sábado, fevereiro 12, 2005

lágrimas frias

A história devia acontecer como se fosse necessária a alguém, não é?, é. Está um dia de chuva e ela está triste, sou eu. Encosto a cabeça ao vidro, húmido, molhado, chove. Lá fora, faz frio.
Estou perto de Estocolmo, capital da Suécia, longe. Na minha terra nem toda a gente saberá onde isto fica, mesmo em minha casa. Não telefonei para minha mãe antes de vir, nem depois.
Começo um conto onde devia explicar tudo, sob a forma dum enredo onde me enredo. Saber qual a personagem guardada para mim?
Fui convidada para um filme pornô, uma cifra interessante em dinheiro e um pormenor importante que me seduziu e fez decidir, a fotografia do meu “partenaire”. O convite, uma carta que me arrasou...
“Não a conheço, descrevo-a a partir da sua foto no teu site, é jovem e genial e isso é suficiente. Aqui o frio fere, empurra as pessoas para dentro de casa, viajo até aos trópicos e encontrei-a. Domino a sua língua por ter estado em Portugal de férias, aí tive a sorte de trazer comigo um pouco de calor e as carícias da língua, uma delícia. Aqui, na minha terra, iniciei uma carreira recente: fazer filme pornô. Tenho conhecido mulheres maravilhosas, vacino-as com todos os vícios que conheço, estou a falar de prazer. Quer vir contracenar comigo, de seu rosto faremos o disfarce perfeito, do seu corpo uma revelação. Seu admirador, J.”
Tive uma vontade louca de aceitar, acabei por vir como já deu para ver. Agora estou à espera que comecem as filmagens, estou a começar a duvidar que ele apareça. Já estou há dois dias numa casa de madeira pré-fabricada, supostamente estou a escrever uma breve novela que não consigo começar.
Ocorreu-me a ideia dele ser escritor, deve estar a escrever a história que imagina que eu esteja a escrever. Quando pensei, quando veio esta ideia, no inicio da página, sentei-me a esta mesa, finalmente estou a escrever.
Tenho lido, trouxe comigo um livro. Uma primeira obra duma autora desconhecida, pelo menos por mim até ter encontrado o seu livro por mero acaso. Mesmo sabendo como, não sei como, não percebo o porquê e o como não tem solução, livro em segunda mão que alguém deixou da mão..., dado? Jogado fora? Esquecido.
Quis ler este livro como se fosse o meu, aquele que venho publicando no meu site. Genial, disse J e fez-me vir até aqui... Vou voltar à casa-de-banho, onde encostei a cabeça à pequena janela e tive a ideia de começar este conto, quero acabá-lo agora. Assim, quase de súbito, duas páginas manuscritas.
Estou a meio da segunda página, vou começar uma carta para a minha mãe:
“Querida,
Não sei como te dizer, viajei. Agora já estou pensando regressar, sinto saudades suas, do pai, do cão, do gato, do piriquito. Desculpa misturar pessoas e animais sem confundir, juntando tudo. O gato no colo, o cão sentado junto, o piriquito voando solto, o pai fumando. À senhora, minha mãe, queria pedir-lhe o cheiro bom da sua cozinha quando cozinha. Está-me dando fome, depois conto esta história.
Regresso breve.”
Mando este postal no dia da partida, talvez. A tentação é grande, acabar este conto como acaba o romance acabado de ler:
“Ela levantou os olhos, olhou através dos vidros da janela e começou a chorar. Estranho, as lágrimas caiam dos olhos e continuava a ver bem, nem emocionada estava, nada sentia, só as lágrimas escorreram.
Para começar a chorar precisava ainda de qualquer coisa, procurar a emoção, esconder a cara nas mãos, um gesto..., mas não era capaz. Olhava para fora, lá para fora, através da janela.”
Também ela esperava um carro, alguém vindo de carro. Ouvia agora passos sobre a neve, alguém se aproximava a pé. Agora não havia dúvida, era só uma pessoa, sacudia a neve das botas, já estava na varanda. Em breve saberia quem, só ela, mais ninguém?